sábado, 14 de junho de 2008

Dez Chamamentos Ao Amigo

Conheci Hilda Hilst no dia de sua morte. Lembro que estava no laboratório de informática quando li a notícia de que havia falecido. Uma fase chata. Tediosa. E sem rumo.
Uma daquelas fases que a gente realmente não sabe pra que veio. Logo, nem pra onde ir. Insatisfeito com as coisas e insatisfeito comigo. Às vezes, criamos expectativas demais para nós mesmos, na esperança, talvez, de que as coisas fiquem mais animadas, mais dinâmicas. E acaba acontecendo justamente o contrário. Ficamos cansados pelo desgaste inútil de energia e sem vontade de fazer mais nada.
Hum... Voltando. Lembro que li a notícia no site e fui procurar saber quem era. Li poemas de sua fase "pornográfica", por assim dizer. Sabe como é, né? A humanidade tem mania de rotular as coisas. Sai separando tudo por "fases" e a fase mais marcante é a usada para definir o todo. Essas definições "globais" são muito úteis para quem tem preguiça de conhecer a obra e precisa ter algo para conversar com os amigos pseudo-intelectuais.
Voltando de novo. Bom, li os poemas e não gostei. Mas pensei cá com os meus botões: "É chato. Mas é cult..." Estava na fase de ostentação da falsa cultura. Enfim, guardei o nome.
O mundo dá voltas, acabei ficando tonto. Muito tempo depois (nem tanto tempo assim, mas quando se tem vinte e poucos anos, alguns anos equivalem a décadas), vou para o show do Zeca Baleiro, do qual só conhecia uma única música: Bandeira. Bom, assistido o show, cantado com toda a minha força a única música que eu sabia, resolvi comprar um CD pra conhecer o moço. O show foi no Teatro Gustavo Leite e a organização colocou CDs à venda na saída. Bom, comprei o primeiro CD que puxei da caixinha e voltei pra pegar o autógrafo do rapaz. CD autografado, chego eu em casa e descubro que o CD não tinha sequer uma música cantada pelo Zeca Baleiro. Nem umazinha. "Potaquepareo", pensei docemente...
Olhei melhor. Tratava-se de poemas da Hilda Hilst, musicados pelo Zeca Baleiro e cantados por cantoras que eu nunca tinha ouvido falar, com exceção da Bethânia ("certo... temos alguma chance") e da Zélia Duncan (que eu não gosto tanto assim)... "POTAQUEPAREO!". Na esperança, comecei pela faixa da Bethânia. Deram o poema mais trucando e sem nenhuma riminha pra ela cantar... "PO-TA-QUE-PA-RE-OOO!"
"Confirmado. Dinheiro perdido", pensei. E deixei o CD guardado, pensando quem seria o próximo aniversariante a ganhar um CD tããããão cult...
Algum tempo depois, um belo dia, sem ter absolutamente nada para fazer e sem nenhuma pretensão, ponho o dito CD para tocar. E algo aconteceu. Sim, senhor. Algo de fato aconteceu.
Escutei o CD a primeira vez, a segunda, a terceira, a quarta... ad infinitum. Li e reli o encarte com os poemas. Fui procurar mais poemas da Hilda Hilst para ver se gostava. E gostei. Gostei dos mesmos poemas que eu não tinha gostado antes. As cantoras que eu não conhecia, passei a conhecer muito bem. Hoje são parte do meu repertório, como Jussara Silveira, Rita Ribeiro, Ná Ozzetti e Mônica Salmaso. E o CD virou para mim um "clássico". Algo que não pode faltar em uma discografia.
Pois bem. Segue um poema. Recomendo, como todo poema, ler em voz alta. Ele ganha uma outra força... A sua. =)

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

(Hilda Hilst)

4 comentários:

Anônimo disse...

Identifiquei-me com o poema...

André disse...

Que bom =)

Anônimo disse...

Caramba, lindo! Quer dizer, lindos! - o texto e o poema.. rsrs
Adorei a parte do "pensando quem seria o próximo aniversariante a ganhar um CD tããããão cult..." rsrs

Vou pesquisar mais sobre ela, e olha que eu nem gosto de poemas tanto assim... pra falar a verdade não gosto nada.. mas chamou a atenção, ela fala de um jeito estranho, envolvente.

Valeu a dica!

Anônimo disse...

Sem levar em conta sua morte, dizem que a coitada só começou a chamar a atenção depois que publicou seu livro pornô...
Poesia será sempre artigo de luxo?