sábado, 27 de dezembro de 2008

Poema do Fim do Ano

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Mora uma louca chamada Esperança:
E quando todas as buzinas fonfonam
quando todos os reco-recos matracam
quando tudo berra quando tudo gira quando tudo apita
A louca tapa os ouvidos
........................................e
.............................................atira-se
e – ó miraculoso vôo! –
Acorda, outra vez menina, lá embaixo, na calçada.
O povo aproxima-se, aflito
E o mais velhinho curva-se e pergunta:
– Como é o teu nome, menininha de olhos verdes?
E ela então sorri a todos eles
E lhes diz, bem devagarinho para que não esqueçam nunca:
– O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

(Mario Quintana)

A todos, um feliz 2009!!!

domingo, 21 de dezembro de 2008

Trilhos Descarrilhados

Vamos. Pare este trem. Quero descer. Não aguento mais.

Haja fome, desgosto, des-sonho e enjôo.

Pare.

Mente descarrilhada, neurônios destrilhados, pensamentos abortivos...

Pare.

Aponte-me a saída, por favor. Não a urgência, mas a emergência que clama no meu suor, nas minhas lágrimas.

Esqueça.

Cansando estou a cada dia, a cada minuto. E esta tecnologia que insiste em tocar?

Pare.

Já faz tempo que estamos em linhas opostas. Nosso horizonte não é o mesmo. Depois daquele monte, mais outro, e mais outro, e mais outro...

Não dá mais pra esperar nem a próxima estação.

Pare, que eu vou descer. Vou andando.

Aguardar o próximo trem.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Teatro I

Retrato de Graciliano Ramos, de Candido Portinari, 1937. Desenho a carvão e crayon/papel.Na pequena capital, de gostos simples e desejos modestos, havia poucas escadas e ignoravam-se completamente os elevadores. Três andares representavam quase montanha entre as casas acaçapadas. Ninguém pensava em andar nos ares, naturalmente. Santos Dumont ensaiava os seus primeiros vôos baixos em Paris, com muitas quedas, e não se dava crédito aos telegramas que os anunciavam.

Desconhecia-se gasolina: os automóveis ainda não tinham aparecido. A cidade se desenvolvia em sentido horizontal, mas desenvolvia-se moderadamente, sem pressa. Um bondinho puxado por burros atravessava de longe em longe a rua do Comércio, quase vazio. Como rodava devagar e encrencava regularmente nas subidas, as pessoas de horário certo na repartição e na loja procediam com segurança economizando o tostão da passagem.

Um grande silêncio, quebrado raramente pelo pregão dos vendedores ambulantes, pelo rumor das carroças e dum cabriolé pertencente ao governador. Quando esse cabriolé, único, passava diante do liceu, as aulas se interrompiam, a meninada soltava os livros, corria para as janelas, gritando, admirando.

À tardinha as calçadas estreitas se enchiam de cadeiras, os vizinhos palestravam algumas horas como se estivessem num salão, indiferentes aos direitos do transeunte raro, que descia degraus e pezunhava entre barrocas e pontas de pedra. Finda a conversa, recolhiam-se os móveis, fechavam-se as portas e a cidadezinha repousava, ordeira e deserta, à luz de lâmpadas miúdas, que esmoreciam, despertavam, esmoreciam de novo e embasbacavam o sujeito do interior, habituado ao lampião de querosene e à fuligem.

No casarão da usina elétrica fervilhavam enormes baratas voadoras. E, como não havia esgotos, o cheiro das sarjetas era horrível.

Nesse meio, onde as gerações se sucediam invariáveis, o governador saía às vezes do carrinho, andava a pé como os viventes ordinários, mas não andava só. Acompanhavam-no pessoas dedicadas, que lhe seguravam o guarda-chuva, conduziam embrulhos, retiravam do caminho as cascas de banana. Acatavam as opiniões dele e achavam muita graça nas anedotas que ele contava. Esses cavalheiros exerciam cargos notáveis: eram senadores, deputados, secretários, ou parentes de secretários, deputados e senadores.

Dentre eles o mais digno de confiança tomava conta do governo por alguns meses no fim do quadriênio, por deferência à constituição. Lavradas as atas, apurados os votos, espancados ou mortos alguns matutos, o chefe permanente declamava a promessa legal no Congresso e voltava ao seu posto, reaquecido pela manifestação unânime dos eleitores, que nada exigiam e nada recebiam.

Sempre escolhido, S. Exa. determinou exibir gratidão: realizar uma obra que o perpetuasse. Refletiu, fez estudos e procurou conselhos. As rodovias foram repelidas, porque no Estado existiam poucos veículos, além dos carros de bois. Excluíram-se também as pontes e quaisquer construções de alicerces profundos e duvidosos. As escolas eram consideradas prejudiciais. Havia algumas, é certo, para dar emprego às filhas dos prefeitos, mas estas não forneciam aos alunos conhecimentos.

Tudo ponderado, S. Exa. resolveu edificar um teatro. Era o que necessitava a capital. Davam-se ali representações de amadores, apareciam, com modéstia, companhias cambembes, cinemas vagabundos, mágicos e hipnotizadores. Espetáculos verdadeiros não se conheciam.

O projeto foi bem recebido, cresceu. Mas para executá-lo faltava numerário. Pouco se podia esperar do orçamento minguado, tão minguado que os tipos mais volumosos ganhavam, aparentemente, uma insignificância. Impossível aumentar a receita, pois os amigos não pagavam impostos e os inimigos, espremidos, estavam secos. Assim, os agentes políticos arrancavam dos proprietários numerosos presentes para o governador no aniversário dele. Nada de banquetes e discursos: valores. Essa contribuição se tornara meio oficial, e a propriedade miúda, gemendo e chorando, se desfalcava com demonstrações de júbilo em telegramas laudatórios. Seria imprudência onerá-la ainda mais.

Decidiu-se, portanto, para levantar o teatro, arranjar na Europa um empréstimo, que no decorrer dos anos subiu extraordinariamente. O dinheiro obtido produziu vários benefícios, especialmente à personagem encarregada das negociações. Esse funcionário viajou bastante: percorreu alguns países, fixou-se na França, mudou-se para lugar mais seguro e aí findou os seus dias tranqüilo, gordo, europeu, tão esquecido da língua materna que já nem compreendia a vasta correspondência que o chamava. Não houve meio de repatriá-lo, apresentá-lo aos correligionários saudosos.

A quantia que chegou ao Brasil deu para muita coisa, e a parte visível dela converteu-se enfim no teatro anunciado longamente na imprensa. Esburacou-se o terreno, as paredes ergueram-se, mas quando os trabalhos iam a meia altura, verificou-se que o local era impróprio, desmanchou-se tudo e reiniciou-se a construção alguns metros adiante. Vencidos diversos contratempos, o prédio se inaugurou, vistoso, com louvores gerais, e logo na estréia adquiriu fama. Uma companhia italiana cantou lá o Rigoletto, Aída, Barbeiro de Sevilha. Alcançou aplausos calorosos e morreu quase toda de febre amarela. Indivíduos impertinentes xingavam o governo, fato que provocou estranheza. Ora essa! O governo tinha culpa?

Pouco depois surgiu no Estado uma desordem. Gritaram-se discursos nos meetings, os jornais oposicionistas tomaram fôlego, vieram reclamações para o Rio, a polícia desmoralizou-se e aderiu – afinal S. Exa. notou que tinha havido uma reviravolta na opinião pública. Lamentou a inconstância dos homens, retirou-se e, numa obscuridade conveniente, desfrutou velhice próspera e finou-se na paz do Senhor. Percebera na verdade vencimentos bem mesquinhos, mas como não pagava aluguel de casa, imposto, luz, não comprava móveis, roupa de cama, pratos, colheres, e o pessoal doméstico era constituído por elementos da Força Pública, efetuara algumas economias e estava rico.

Nunca se liquidou o empréstimo, naturalmente.

Cultura Política, ano I, nº 7, Rio de Janeiro, set. 1941.

In: Graciliano Ramos. Viventes das Alagoas. 19ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 53-57.

Teatro Deodoro – Histórico:
Desde 1898, no governo de Manoel José Duarte, no antigo Largo da Cotinguiba, também chamado "Das Princesas", hoje Praça Deodoro, tenta-se perpetuar os espetáculos culturais em local apropiado. Foram iniciadas as obras de um Teatro que deveria ser chamado "Teatro 16 de Setembro" que por motivos ignorados sua construção foi interrompida e posteriormente demolida e sua área foi ocupada pela estátua eqüestre do proclamador da República. Leia mais.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Cajuína

Existirmos: a que será que se destina?

- Ô! Moço!
- Oi...
- Desculpe incomodar o senhor... Mas é que eu estou sem dinheiro para a passagem... Vim pra cá pra fazer um exame e não tenho dinheiro para voltar, moço...
- Hum... Peraí... Deixa eu ver se eu tenho... É que eu uso a carteirinha para pegar o ônibus... Acho que... Tô. Tem aqui.
- O senhor é estudante, é? Estudante de quê?
- Eu faço Direito...
- Direito, é? Ah! Eu fiz faculdade de Direito também. Em São Paulo. Gostava da parte de Penal... Nélson Hungria, o Damásio de Jesus, conhece?
- Hã... Conheço sim, mas lá a gente estuda com outros autores. Esses são mais clássicos... Acho que nem todo mundo lá conhece. O Damásio ainda é famoso, mas o Nélson Hungria pouca gente sabe quem é...
- Ah. Mas eu gostava muito de Direito Penal, Processo Penal... Lia tudo. Que autor o moço conhece?
- Bom... Lá a gente usa mais o Bittencourt e o Régis Prado. Mas penal não é a minha área favorita, não...
- E qual é a sua área favorita?
- É... Não sei te responder...
- Entendo...
- Mas o senhor estudou há muito tempo?
- Ah, sim. Faz tempo...
- E por que é que o senhor saiu de São Paulo?

(...)

- Vim fazer o exame porque sou portador do HIV. Eu tomo os anti-retrovirais. Antes de começar a tomar, o resultado da contagem de CD4 dava em 200... Hoje, dá 800! Uma contagem normal numa pessoa sem o vírus pode variar entre as 600 e 1200 células CD4 por mm3. A carga viral do HIV-1 também está boa...
- ...Que bom. Mas como foi que o senhor ficou doente?
- Olhe, moço. Nunca traí minha mulher. Foi num acidente.
- Acidente?
- Quando estávamos vindo de São Paulo, sofri um acidente de carro. Minha mulher morreu. Eu tive que fazer transfusão de sangue... Depois descobri que estava doente.
- Mas e por que o senhor não processou o hospital?
- Eu não tinha como provar que foi lá. Mas só pode ter sido, moço. Sou um homem direito. Nunca traí minha mulher. E eu não tinha dinheiro para isso também...
- Entendo...
- O senhor engana, moço. Andando assim curvado de cabeça baixa...
- Ah... É por causa desse sol...
- É o sol está brabo mesmo... Mas muito obrigado, viu moço? Não quero mais atrapalhar o senhor...
- Que é isso? Problema nenhum...
- Deus lhe pague, viu moço? Que o senhor seja um advogado de muito sucesso. O senhor quer advogar?
- Hã... Eu não sei ainda...
- O senhor está em que ano?
- No 4º...
- Entendo... Deus te abençoe, viu moço. Muito obrigado mesmo.
- Não, não foi nada.
- Muito obrigado. Até mais.
- Até...

Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina


(Caetano Veloso)