
Desconhecia-se gasolina: os automóveis ainda não tinham aparecido. A cidade se desenvolvia em sentido horizontal, mas desenvolvia-se moderadamente, sem pressa. Um bondinho puxado por burros atravessava de longe em longe a rua do Comércio, quase vazio. Como rodava devagar e encrencava regularmente nas subidas, as pessoas de horário certo na repartição e na loja procediam com segurança economizando o tostão da passagem.
Um grande silêncio, quebrado raramente pelo pregão dos vendedores ambulantes, pelo rumor das carroças e dum cabriolé pertencente ao governador. Quando esse cabriolé, único, passava diante do liceu, as aulas se interrompiam, a meninada soltava os livros, corria para as janelas, gritando, admirando.
À tardinha as calçadas estreitas se enchiam de cadeiras, os vizinhos palestravam algumas horas como se estivessem num salão, indiferentes aos direitos do transeunte raro, que descia degraus e pezunhava entre barrocas e pontas de pedra. Finda a conversa, recolhiam-se os móveis, fechavam-se as portas e a cidadezinha repousava, ordeira e deserta, à luz de lâmpadas miúdas, que esmoreciam, despertavam, esmoreciam de novo e embasbacavam o sujeito do interior, habituado ao lampião de querosene e à fuligem.
No casarão da usina elétrica fervilhavam enormes baratas voadoras. E, como não havia esgotos, o cheiro das sarjetas era horrível.
Nesse meio, onde as gerações se sucediam invariáveis, o governador saía às vezes do carrinho, andava a pé como os viventes ordinários, mas não andava só. Acompanhavam-no pessoas dedicadas, que lhe seguravam o guarda-chuva, conduziam embrulhos, retiravam do caminho as cascas de banana. Acatavam as opiniões dele e achavam muita graça nas anedotas que ele contava. Esses cavalheiros exerciam cargos notáveis: eram senadores, deputados, secretários, ou parentes de secretários, deputados e senadores.
Dentre eles o mais digno de confiança tomava conta do governo por alguns meses no fim do quadriênio, por deferência à constituição. Lavradas as atas, apurados os votos, espancados ou mortos alguns matutos, o chefe permanente declamava a promessa legal no Congresso e voltava ao seu posto, reaquecido pela manifestação unânime dos eleitores, que nada exigiam e nada recebiam.
Sempre escolhido, S. Exa. determinou exibir gratidão: realizar uma obra que o perpetuasse. Refletiu, fez estudos e procurou conselhos. As rodovias foram repelidas, porque no Estado existiam poucos veículos, além dos carros de bois. Excluíram-se também as pontes e quaisquer construções de alicerces profundos e duvidosos. As escolas eram consideradas prejudiciais. Havia algumas, é certo, para dar emprego às filhas dos prefeitos, mas estas não forneciam aos alunos conhecimentos.
Tudo ponderado, S. Exa. resolveu edificar um teatro. Era o que necessitava a capital. Davam-se ali representações de amadores, apareciam, com modéstia, companhias cambembes, cinemas vagabundos, mágicos e hipnotizadores. Espetáculos verdadeiros não se conheciam.
O projeto foi bem recebido, cresceu. Mas para executá-lo faltava numerário. Pouco se podia esperar do orçamento minguado, tão minguado que os tipos mais volumosos ganhavam, aparentemente, uma insignificância. Impossível aumentar a receita, pois os amigos não pagavam impostos e os inimigos, espremidos, estavam secos. Assim, os agentes políticos arrancavam dos proprietários numerosos presentes para o governador no aniversário dele. Nada de banquetes e discursos: valores. Essa contribuição se tornara meio oficial, e a propriedade miúda, gemendo e chorando, se desfalcava com demonstrações de júbilo em telegramas laudatórios. Seria imprudência onerá-la ainda mais.
Decidiu-se, portanto, para levantar o teatro, arranjar na Europa um empréstimo, que no decorrer dos anos subiu extraordinariamente. O dinheiro obtido produziu vários benefícios, especialmente à personagem encarregada das negociações. Esse funcionário viajou bastante: percorreu alguns países, fixou-se na França, mudou-se para lugar mais seguro e aí findou os seus dias tranqüilo, gordo, europeu, tão esquecido da língua materna que já nem compreendia a vasta correspondência que o chamava. Não houve meio de repatriá-lo, apresentá-lo aos correligionários saudosos.
A quantia que chegou ao Brasil deu para muita coisa, e a parte visível dela converteu-se enfim no teatro anunciado longamente na imprensa. Esburacou-se o terreno, as paredes ergueram-se, mas quando os trabalhos iam a meia altura, verificou-se que o local era impróprio, desmanchou-se tudo e reiniciou-se a construção alguns metros adiante. Vencidos diversos contratempos, o prédio se inaugurou, vistoso, com louvores gerais, e logo na estréia adquiriu fama. Uma companhia italiana cantou lá o Rigoletto, Aída, Barbeiro de Sevilha. Alcançou aplausos calorosos e morreu quase toda de febre amarela. Indivíduos impertinentes xingavam o governo, fato que provocou estranheza. Ora essa! O governo tinha culpa?
Pouco depois surgiu no Estado uma desordem. Gritaram-se discursos nos meetings, os jornais oposicionistas tomaram fôlego, vieram reclamações para o Rio, a polícia desmoralizou-se e aderiu – afinal S. Exa. notou que tinha havido uma reviravolta na opinião pública. Lamentou a inconstância dos homens, retirou-se e, numa obscuridade conveniente, desfrutou velhice próspera e finou-se na paz do Senhor. Percebera na verdade vencimentos bem mesquinhos, mas como não pagava aluguel de casa, imposto, luz, não comprava móveis, roupa de cama, pratos, colheres, e o pessoal doméstico era constituído por elementos da Força Pública, efetuara algumas economias e estava rico.
Nunca se liquidou o empréstimo, naturalmente.
Cultura Política, ano I, nº 7, Rio de Janeiro, set. 1941.
In: Graciliano Ramos. Viventes das Alagoas. 19ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 53-57.
Teatro Deodoro – Histórico:
Desde 1898, no governo de Manoel José Duarte, no antigo Largo da Cotinguiba, também chamado "Das Princesas", hoje Praça Deodoro, tenta-se perpetuar os espetáculos culturais em local apropiado. Foram iniciadas as obras de um Teatro que deveria ser chamado "Teatro 16 de Setembro" que por motivos ignorados sua construção foi interrompida e posteriormente demolida e sua área foi ocupada pela estátua eqüestre do proclamador da República. Leia mais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário