sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Teatro I

Retrato de Graciliano Ramos, de Candido Portinari, 1937. Desenho a carvão e crayon/papel.Na pequena capital, de gostos simples e desejos modestos, havia poucas escadas e ignoravam-se completamente os elevadores. Três andares representavam quase montanha entre as casas acaçapadas. Ninguém pensava em andar nos ares, naturalmente. Santos Dumont ensaiava os seus primeiros vôos baixos em Paris, com muitas quedas, e não se dava crédito aos telegramas que os anunciavam.

Desconhecia-se gasolina: os automóveis ainda não tinham aparecido. A cidade se desenvolvia em sentido horizontal, mas desenvolvia-se moderadamente, sem pressa. Um bondinho puxado por burros atravessava de longe em longe a rua do Comércio, quase vazio. Como rodava devagar e encrencava regularmente nas subidas, as pessoas de horário certo na repartição e na loja procediam com segurança economizando o tostão da passagem.

Um grande silêncio, quebrado raramente pelo pregão dos vendedores ambulantes, pelo rumor das carroças e dum cabriolé pertencente ao governador. Quando esse cabriolé, único, passava diante do liceu, as aulas se interrompiam, a meninada soltava os livros, corria para as janelas, gritando, admirando.

À tardinha as calçadas estreitas se enchiam de cadeiras, os vizinhos palestravam algumas horas como se estivessem num salão, indiferentes aos direitos do transeunte raro, que descia degraus e pezunhava entre barrocas e pontas de pedra. Finda a conversa, recolhiam-se os móveis, fechavam-se as portas e a cidadezinha repousava, ordeira e deserta, à luz de lâmpadas miúdas, que esmoreciam, despertavam, esmoreciam de novo e embasbacavam o sujeito do interior, habituado ao lampião de querosene e à fuligem.

No casarão da usina elétrica fervilhavam enormes baratas voadoras. E, como não havia esgotos, o cheiro das sarjetas era horrível.

Nesse meio, onde as gerações se sucediam invariáveis, o governador saía às vezes do carrinho, andava a pé como os viventes ordinários, mas não andava só. Acompanhavam-no pessoas dedicadas, que lhe seguravam o guarda-chuva, conduziam embrulhos, retiravam do caminho as cascas de banana. Acatavam as opiniões dele e achavam muita graça nas anedotas que ele contava. Esses cavalheiros exerciam cargos notáveis: eram senadores, deputados, secretários, ou parentes de secretários, deputados e senadores.

Dentre eles o mais digno de confiança tomava conta do governo por alguns meses no fim do quadriênio, por deferência à constituição. Lavradas as atas, apurados os votos, espancados ou mortos alguns matutos, o chefe permanente declamava a promessa legal no Congresso e voltava ao seu posto, reaquecido pela manifestação unânime dos eleitores, que nada exigiam e nada recebiam.

Sempre escolhido, S. Exa. determinou exibir gratidão: realizar uma obra que o perpetuasse. Refletiu, fez estudos e procurou conselhos. As rodovias foram repelidas, porque no Estado existiam poucos veículos, além dos carros de bois. Excluíram-se também as pontes e quaisquer construções de alicerces profundos e duvidosos. As escolas eram consideradas prejudiciais. Havia algumas, é certo, para dar emprego às filhas dos prefeitos, mas estas não forneciam aos alunos conhecimentos.

Tudo ponderado, S. Exa. resolveu edificar um teatro. Era o que necessitava a capital. Davam-se ali representações de amadores, apareciam, com modéstia, companhias cambembes, cinemas vagabundos, mágicos e hipnotizadores. Espetáculos verdadeiros não se conheciam.

O projeto foi bem recebido, cresceu. Mas para executá-lo faltava numerário. Pouco se podia esperar do orçamento minguado, tão minguado que os tipos mais volumosos ganhavam, aparentemente, uma insignificância. Impossível aumentar a receita, pois os amigos não pagavam impostos e os inimigos, espremidos, estavam secos. Assim, os agentes políticos arrancavam dos proprietários numerosos presentes para o governador no aniversário dele. Nada de banquetes e discursos: valores. Essa contribuição se tornara meio oficial, e a propriedade miúda, gemendo e chorando, se desfalcava com demonstrações de júbilo em telegramas laudatórios. Seria imprudência onerá-la ainda mais.

Decidiu-se, portanto, para levantar o teatro, arranjar na Europa um empréstimo, que no decorrer dos anos subiu extraordinariamente. O dinheiro obtido produziu vários benefícios, especialmente à personagem encarregada das negociações. Esse funcionário viajou bastante: percorreu alguns países, fixou-se na França, mudou-se para lugar mais seguro e aí findou os seus dias tranqüilo, gordo, europeu, tão esquecido da língua materna que já nem compreendia a vasta correspondência que o chamava. Não houve meio de repatriá-lo, apresentá-lo aos correligionários saudosos.

A quantia que chegou ao Brasil deu para muita coisa, e a parte visível dela converteu-se enfim no teatro anunciado longamente na imprensa. Esburacou-se o terreno, as paredes ergueram-se, mas quando os trabalhos iam a meia altura, verificou-se que o local era impróprio, desmanchou-se tudo e reiniciou-se a construção alguns metros adiante. Vencidos diversos contratempos, o prédio se inaugurou, vistoso, com louvores gerais, e logo na estréia adquiriu fama. Uma companhia italiana cantou lá o Rigoletto, Aída, Barbeiro de Sevilha. Alcançou aplausos calorosos e morreu quase toda de febre amarela. Indivíduos impertinentes xingavam o governo, fato que provocou estranheza. Ora essa! O governo tinha culpa?

Pouco depois surgiu no Estado uma desordem. Gritaram-se discursos nos meetings, os jornais oposicionistas tomaram fôlego, vieram reclamações para o Rio, a polícia desmoralizou-se e aderiu – afinal S. Exa. notou que tinha havido uma reviravolta na opinião pública. Lamentou a inconstância dos homens, retirou-se e, numa obscuridade conveniente, desfrutou velhice próspera e finou-se na paz do Senhor. Percebera na verdade vencimentos bem mesquinhos, mas como não pagava aluguel de casa, imposto, luz, não comprava móveis, roupa de cama, pratos, colheres, e o pessoal doméstico era constituído por elementos da Força Pública, efetuara algumas economias e estava rico.

Nunca se liquidou o empréstimo, naturalmente.

Cultura Política, ano I, nº 7, Rio de Janeiro, set. 1941.

In: Graciliano Ramos. Viventes das Alagoas. 19ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 53-57.

Teatro Deodoro – Histórico:
Desde 1898, no governo de Manoel José Duarte, no antigo Largo da Cotinguiba, também chamado "Das Princesas", hoje Praça Deodoro, tenta-se perpetuar os espetáculos culturais em local apropiado. Foram iniciadas as obras de um Teatro que deveria ser chamado "Teatro 16 de Setembro" que por motivos ignorados sua construção foi interrompida e posteriormente demolida e sua área foi ocupada pela estátua eqüestre do proclamador da República. Leia mais.

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