domingo, 23 de novembro de 2008

Tentativa de ser um escritor

René Magritte. Portrait d'Edward James, 1937Muito bem. Estou aqui diante da folha de papel. O que escrever? Não deve ser difícil, certo? Muita gente escreve. Até Bruna Surfistinha escreve. Então, por que não eu?Mas o que escrever? Um romance, um poema, um conto...? Isso. Um conto. É mais fácil. Não preciso desenvolver muito os personagens. Os personagens? Se quiser, posso deixar apenas um. Ou não deixar. Farei um conto pós-moderno. Não, melhor. Pós-pós-moderno. De vanguarda. Aliás, de pós-vanguarda. Serei um pós-vanguardiano. Certo. Resolvido este detalhe. Será um conto pós-pós-moderno. O que mais agora...? Ah, sim. A história... Bom, será apenas um personagem. Vejamos:

Ele estava ali diante do espelho.

Diante do espelho? E agora? Fazendo o quê? Hum... Não pode ser uma coisa muito óbvia. Afinal, é um conto pós-pós-moderno. Ou talvez justamente por isso, deva ser uma coisa óbvia? Que confuso...

Ele estava ali diante do espelho. E notou que o espelho estava diante dele.

Será que isso passa por profundo? Não quer dizer absolutamente nada, mas pode ser que alguém acabe vislumbrando uma genialidade... Vamos lá.

Ele estava ali diante do espelho. E notou que o espelho estava diante dele. Espesso espelho. Não refletia o que gostaria de ver, mas o avesso. O avesso do nada que, por paradoxal constituição, também é nada. Seu avesso e seu anverso. Verso de ilusão coletiva que desmorona acintes. Finórios saberes do espesso espelho. Por que não refletir a sua imagem, mas o avesso de tudo? Sim, pois de tudo o avesso é o nada. E na espessura do espelho se viam os seus avessos. E os avessos de seus supostos avessos. De que adiantava tudo isso? Ele ainda estava ali. Na frente do espelho. E se saísse? E se fosse para outro lugar? De que adianta? A espessura refletida o acompanharia. Não era a sua imagem, mas era o que era. O espelho não mente.

Essa última frase é particularmente ridícula. Lógico que o espelho não mente, mesmo porque ele não emite nenhuma declaração... Ai, ai, ai. Pressinto que verão alguma genialidade aí... Aliás, já se apresentam genialidades demais. Quero acabar logo com isso...

O espelho não mente. Esta é a verdade absoluta. A verdade da vida. E diante da verdade da vida, da espessura do espelho, do avesso, do anverso e do reverso, ele parou. Parou.

E agora? Um conto pós-pós-moderno...

Ele parou. Parou. E um dromedário morreu na Guatemala.

Certo. Um conto pós-pós-moderno. Sucesso, aí vou eu!

domingo, 2 de novembro de 2008

ELOÁ: O QUE AS MÍDIAS E OS ESPECIALISTAS NÃO DISCUTEM

Não concordo com todos os pontos colocados, existem muito ainda a se aprofundar na temática: violência urbana, pedofilia, machismo, feminismo e sexismo... mas já é melhor do que qualquer entrevista do gênero "especial-paga" que a grande mídia circula por aí... retirado do sítio www.fazendomedia.com

Por Sandra Raquew dos Santos Azevedo (*)

Há menos de 24h do trágico desfecho do seqüestro de Eloá Cristina Pimentel, por Lindemberg Alves, todos atônitos procuramos “compreender” via mediação dos meios de comunicação social e de especialistas da segurança pública, psicólogos, e outros, um fato presente cotidianamente no noticiário: o assassinato de mulheres.

Muitas são as explicações que tentam dar conta do comportamento do jovem, cujo perfil durante o processo de negociação fora retratado pelos meios como de um rapaz tranqüilo, trabalhador, que tinha planos para casar.

“Dificuldade de lidar com as frustrações”; “comportamento passional”, “de tolerância muito baixa às frustrações”, entre outros argumentos são discutidos publicamente em jornais, sites, rádio, enfim, em todo processo de agendamento desta lamentável crônica de mais uma tragédia midiatizada. Inúmeros aspectos deste acontecimento são ressaltados na cobertura: o lugar, os protagonistas, o tempo, amigos, imagens, os momentos de negociação, os lugares de origem de Eloá e Lindemberg, as imagens...

Todavia há um aspecto a ser considerado nesta notícia, e que passa intocado na cobertura de crimes que possuem semelhança com o homicídio de Eloá, o fato de que eles se relacionam com as desigualdades de gênero. Se nos negarmos a discutir também nos noticiários esta face da violência, será muito difícil à superação de algo que pode ser considerado, lamentavelmente, um padrão cultural vigente, a prática de crimes contra as mulheres.

Um breve monitoramento de mídia permite perceber a brutalidade e reificação de crimes como estes: eles não são apenas crimes passionais, podem ser situados numa teia complexa de construção de valores sociais que forjam um feminino fraco, vulnerável, incapaz e sem condições de decidir a própria vida, em contraposição a um modelo de masculinidade rígido e legitimado socialmente a partir da força, da dominação e do controle. São de certa maneira estes alguns dos elementos que mantém os mecanismos psíquicos do poder na constituição do sujeito e a na construção da sujeição.

Perceber os gêneros como processo de mediação do social é urgente para nos darmos conta da violência contra a mulher como um fenômeno social cujo aparecimento cotidiano nas mídias também precisa ser interpretado, refletido com e a partir dos veículos de comunicação e tendo como foco o papel social dos profissionais de imprensa.

A motivação de Lindemberg em manter seqüestrada Eloá e tentar pôr fim à vida da jovem se inter-relaciona com outros fatos conhecidos da sociedade brasileira, como os assassinatos de Ângela Diniz, Sandra Gominde, Daniela Perez, e ainda de inúmeros casos de violência e homicídios femininos que são noticiados, mas que carecem não de uma tentativa de tentar compreender o comportamento masculino, mas de questionar os valores sociais que se reproduzem nas trocas simbólicas e tecem ainda, tristemente, este predomínio do falo que oprime e extermina.

O tiro na virilha de Eloá não é só uma metáfora, mas uma expressão do ódio da tentativa frustrada de continuar mantendo o exercício do controle sobre o corpo das mulheres, por isto me sinto hoje também transpassada por esta bala.

Numa das notícias veiculadas sobre o Caso Eloá, dois personagens sobrenaturais surgiram: um anjinho e um diabinho que acompanhavam Lindemberg. Parece inacreditável, mas este recurso, muito comum entre homens que praticam violência contra as mulheres, aparece mais uma vez como uma máscara, uma performance que busca esconder o lado perverso de um imaginário social que em momentos como este é despertado pelos disparos protagonizados por um homem que representa os mecanismos simbólicos forjados socialmente e que negam cotidianamente às mulheres o seu direito a vida.

(*) Sandra Raquew dos Santos Azevedo é jornalista.