- Você pode tirar uma foto minha?
- Claro.
E peguei a máquina, ao tempo em que o rapaz dava as costas a minha direção.
- Hã... Já tô pronto, viu? Pode se virar agora.
- Não, pode tirar assim. É pra ficar natural...
Que mundo é esse, hein? Vocês já repararam nas fotos de MSN, Orkut e similares? Há foto de gente de perfil, sorrindo e olhando para baixo, olhando pra cima com uma tentativa frustrada de um olhar perdido, deitado numa pose caseira de "mamãe, eu quero ser modelo", de costas naquela de "Hã? Tinha uma câmera aí, é? Olha que coisa... Nem percebi...".
Na minha infância, tudo era estupidamente simples. Não havia máquina digital. Portanto, não se arriscava. Olhava-se diretamente para câmera, sorria-se e, de quebra, dizia-se "Xisssssss". Hoje, são poucas as fotos de alguém nessas condições.
Faz um tempo já. Viajei para Garanhuns para assistir o show do Paulinho da Viola e o do Ney Matogrosso. O do Paulinho da Viola havia sido cancelado e eu não sabia. E o do Ney Matogrosso começou pontualmente, o que me fez perder metade do show e assistir a outra metade sob uma tempestade torrencial que não me permitia enxergar um palmo, ou melhor, que não me permitia enxergar. Mas isso não vem ao caso, eu acho.
Quando estava indo para o show, a gente passou por uma ruela escura, muito mal iluminada mesmo, que disseram vender licor de abacaxi, pitanga, mangaba, acerola, araçá e qualquer outra fruta que se pudesse imaginar. Bom, eu não tinha o menor interesse no licor, muito menos no breu da rua, mas para não ser o do contra - o que, ultimamente, já está se tornando o meu papel institucional - não disse que era a favor, nem contra e decidiram entrar na ruela.
No meio da ruela, havia um bar. Na época da minha vó, seria chamado de espelunca, mas hoje chamam de ambiente underground. Bom, no bar-espelunca-underground, lógico, havia bêbados-pseudointelectuais-undergroudianos. "Gente que lê, entende? Que pensa na população enquanto os burgueses fazem... hã... as suas coisas de burgueses". Se era gente que lia, eu duvido. Se era gente que lia e entendia, isso então acho que era mais complicado ainda.
Bom, nesse meio tempo, o grupo que eu estava não entrou no bar-espelunca-underground. Ficou parado na frente, que também tinha bastante gente, fazendo absolutamente nada. Para sinalizar que estava gostando, alguém soltava um "Massa".
E, do nada, um colega ganhou um ovo. Ovo normal de galinha. Com um detalhe: havia algo escrito. Em letras pretas, estava a palavra "inessistente" e, sobre os dois "s", um "x".
E rolou um diálogo:
- Qué isso?
- Um ovo.
- Oxe. Quero não esse ovo.
- Mas o ovo é seu.
- Mas eu não quero não.
- Mas já é seu.
E o grupo que estava comigo aparentemente percebeu uma atmosfera esquisita e acharam que era melhor se retirar. Eu, a esta altura, já estava achando que finalmente alguma coisa interessante iria acontecer. Uma charada, uma lição, quem sabe?... Ora essa, se o rapaz havia dado um ovo com algo escrito, algum significado haveria de ter. E fiquei involuntariamente com a cabeça trabalhando. Ine-ss-istente. Com dois "s"? Como ninguém comete por engano um erro desses, já se sabe que foi de propósito. Podia ter alguma coisa a ver com insistir? Pode ser... E por que o ovo? E por que ele não existe?
O fato é que passei mais de duas horas pensando nisso e passeando pela cidade com um ovo na mão. Deixei o ovo sozinho por algum tempo quando fui entrar numa exposição no SESC, mas quando voltei, ele continuava lá.
Então, quando não agüentei mais, pedi para voltar ao bar-espelunca-underground. Localizei o rapaz que deu o ovo e, pra que não parecesse que eu não tinha pensado a respeito, fui logo dando a minha explicação:
- Olha só, eu acho que entendi alguma coisa... O ovo simboliza uma relação dual. O "inessistente" é de "insistir". Um indivíduo insiste para que o outro fique com o ovo. E o outro "inessiste" e fica com o ovo. Enquanto isso, o ovo existe para um e inexiste para o outro. Era algo parecido?
É verdade... Eu devia estar com muito sono para concluir isso. Mas enfim, era uma tentativa mesmo. Esperava que a explicação viesse depois. E veio a resposta:
- Hã?
- Hã o quê? Era isso?
- Isso o quê?
- O "inessistente" com dois "s", o...
- Não, aqui tá inexistente com... Hã... É mesmo... Ah, mas isso foi engano...
- Engano? Mas...
- Meu amigo, você tá incomodado com o ovo?
- Hein???
- Tá incomodado? Joga no chão e pronto.
E antes que eu pudesse fazer alguma coisa, o rapaz se afastou e foi decalcar com giz o contorno de um companheiro no muro. Eu, com a minha cara de besta, não joguei o ovo no chão. Coloquei-o em cima do parapeito da janela do bar para que todos vissem o ovo inexistente. E, no fundo, o sentido era que ele inexistia de sentido.
- Claro.
E peguei a máquina, ao tempo em que o rapaz dava as costas a minha direção.
- Hã... Já tô pronto, viu? Pode se virar agora.
- Não, pode tirar assim. É pra ficar natural...
Que mundo é esse, hein? Vocês já repararam nas fotos de MSN, Orkut e similares? Há foto de gente de perfil, sorrindo e olhando para baixo, olhando pra cima com uma tentativa frustrada de um olhar perdido, deitado numa pose caseira de "mamãe, eu quero ser modelo", de costas naquela de "Hã? Tinha uma câmera aí, é? Olha que coisa... Nem percebi...".
Na minha infância, tudo era estupidamente simples. Não havia máquina digital. Portanto, não se arriscava. Olhava-se diretamente para câmera, sorria-se e, de quebra, dizia-se "Xisssssss". Hoje, são poucas as fotos de alguém nessas condições.
Faz um tempo já. Viajei para Garanhuns para assistir o show do Paulinho da Viola e o do Ney Matogrosso. O do Paulinho da Viola havia sido cancelado e eu não sabia. E o do Ney Matogrosso começou pontualmente, o que me fez perder metade do show e assistir a outra metade sob uma tempestade torrencial que não me permitia enxergar um palmo, ou melhor, que não me permitia enxergar. Mas isso não vem ao caso, eu acho.
Quando estava indo para o show, a gente passou por uma ruela escura, muito mal iluminada mesmo, que disseram vender licor de abacaxi, pitanga, mangaba, acerola, araçá e qualquer outra fruta que se pudesse imaginar. Bom, eu não tinha o menor interesse no licor, muito menos no breu da rua, mas para não ser o do contra - o que, ultimamente, já está se tornando o meu papel institucional - não disse que era a favor, nem contra e decidiram entrar na ruela.
No meio da ruela, havia um bar. Na época da minha vó, seria chamado de espelunca, mas hoje chamam de ambiente underground. Bom, no bar-espelunca-underground, lógico, havia bêbados-pseudointelectuais-undergroudianos. "Gente que lê, entende? Que pensa na população enquanto os burgueses fazem... hã... as suas coisas de burgueses". Se era gente que lia, eu duvido. Se era gente que lia e entendia, isso então acho que era mais complicado ainda.
Bom, nesse meio tempo, o grupo que eu estava não entrou no bar-espelunca-underground. Ficou parado na frente, que também tinha bastante gente, fazendo absolutamente nada. Para sinalizar que estava gostando, alguém soltava um "Massa".
E, do nada, um colega ganhou um ovo. Ovo normal de galinha. Com um detalhe: havia algo escrito. Em letras pretas, estava a palavra "inessistente" e, sobre os dois "s", um "x".
E rolou um diálogo:
- Qué isso?
- Um ovo.
- Oxe. Quero não esse ovo.
- Mas o ovo é seu.
- Mas eu não quero não.
- Mas já é seu.
E o grupo que estava comigo aparentemente percebeu uma atmosfera esquisita e acharam que era melhor se retirar. Eu, a esta altura, já estava achando que finalmente alguma coisa interessante iria acontecer. Uma charada, uma lição, quem sabe?... Ora essa, se o rapaz havia dado um ovo com algo escrito, algum significado haveria de ter. E fiquei involuntariamente com a cabeça trabalhando. Ine-ss-istente. Com dois "s"? Como ninguém comete por engano um erro desses, já se sabe que foi de propósito. Podia ter alguma coisa a ver com insistir? Pode ser... E por que o ovo? E por que ele não existe?
O fato é que passei mais de duas horas pensando nisso e passeando pela cidade com um ovo na mão. Deixei o ovo sozinho por algum tempo quando fui entrar numa exposição no SESC, mas quando voltei, ele continuava lá.
Então, quando não agüentei mais, pedi para voltar ao bar-espelunca-underground. Localizei o rapaz que deu o ovo e, pra que não parecesse que eu não tinha pensado a respeito, fui logo dando a minha explicação:
- Olha só, eu acho que entendi alguma coisa... O ovo simboliza uma relação dual. O "inessistente" é de "insistir". Um indivíduo insiste para que o outro fique com o ovo. E o outro "inessiste" e fica com o ovo. Enquanto isso, o ovo existe para um e inexiste para o outro. Era algo parecido?
É verdade... Eu devia estar com muito sono para concluir isso. Mas enfim, era uma tentativa mesmo. Esperava que a explicação viesse depois. E veio a resposta:
- Hã?
- Hã o quê? Era isso?
- Isso o quê?
- O "inessistente" com dois "s", o...
- Não, aqui tá inexistente com... Hã... É mesmo... Ah, mas isso foi engano...
- Engano? Mas...
- Meu amigo, você tá incomodado com o ovo?
- Hein???
- Tá incomodado? Joga no chão e pronto.
E antes que eu pudesse fazer alguma coisa, o rapaz se afastou e foi decalcar com giz o contorno de um companheiro no muro. Eu, com a minha cara de besta, não joguei o ovo no chão. Coloquei-o em cima do parapeito da janela do bar para que todos vissem o ovo inexistente. E, no fundo, o sentido era que ele inexistia de sentido.